Para muitos, a magnitude da incerteza pouco importa, desde que ratifique as próprias crenças
Stevens Rehen, cientista, professor da UFRJ e do Instituto D'Or
É impossível imaginar um mundo sem ciência. A revolução científica nos trouxe conforto, saúde e longevidade.
Apesar disso, conquistas científicas tem sido frequentemente questionadas de maneira não fundamentada. Não porque as pessoas deixaram de reconhecer a importância da ciência, muito pelo contrário. No Brasil, assim como na Europa e Estados Unidos, a maioria da população valoriza o conhecimento científico. A negação é normalmente pontual e dependente de motivações pessoais, econômicas, políticas ou religiosas.
Considerar que vacinas fazem mal porque são produzidas pela indústria farmacêutica que "só quer lucrar" ou que o aquecimento global não é culpa do homem e combate-lo um impeditivo ao progresso econômico, são exemplos recentes.
Da mesma forma, quem defende que maconha não pode ser legalizada pois cada usuário é um risco para a sociedade, ignora que, somente no estado da Califórnia, suas aplicações terapêuticas já beneficiam 2 milhões de pacientes e que seu mercado recreativo tem faturamento anual previsto de US$ 7 bilhões de dólares.
A negação também pode ser motivada pela conformidade e julgamento subjetivo sobre a chance de algo acontecer. A frequência com que exemplos (de um determinado evento) surgem, define nossa percepção sobre a iminência dos acontecimentos.
Enquanto casos de poliomielite na Nigéria e difteria na Venezuela podem ser atribuídos à pobreza e colapso dos respectivos governos, surtos recentes de sarampo na Europa tiveram origem na ausência de crianças doentes, justamente pelo sucesso das campanhas de vacinação de décadas passadas.
A sensação de que algo está prestes a acontecer é forte quando diz respeito a situações de risco. Notícias ruins "grudam" no nosso cérebro mais facilmente do que algo agradável. Comportamento justificado – e preservado evolutivamente – como estratégia de antecipação a situações de perigo coletivo. A aviação comercial nunca foi tão segura como hoje, no entanto, o medo de voar ressurge a cada notícia de acidente em algum lugar remoto do planeta. A verdade vale menos que uma história incrível.
Notícias falsas são disseminadas desde o início da civilização, mas com o advento dos algoritmos e big data, ressurgiram personalizadas, de acordo com preconceitos e crenças, e sem espaço para o contraditório.
O falso consenso é facilmente obtido em grupos sociais de referência, formados por parentes e amigos reais ou virtuais. Noventa e dois milhões de brasileiros no Facebook e cento e vinte milhões no WhatsApp são bombardeados com mensagens e vídeos falsos repassados, muitas vezes, por pessoas da maior confiança.
Quanto mais acreditamos que nossos sentimentos garantem a tomada correta de decisão, mais fácil somos manipulados. Não é de surpreender que dúvidas sobre dados científicos consolidados – a respeito de vacinas, mudanças climáticas ou alimentos transgênicos – e também sobre as eleições sejam estratégia recorrente para sustentar ideologias das mais variadas.
Para muitos, a magnitude da incerteza pouco importa, desde que ratifique as próprias crenças.
Aliás, a repetição ad nauseam de uma informação também fortalece um consenso social presumido, mesmo quando não há consenso. "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade", diria Joseph Goebbles, ministro de Hitler.
Como espécie, uma de nossas virtudes é a habilidade de fazer inferências causais e gerar explicações sobre qualquer coisa que aconteça ao nosso redor. Muitas vezes, porém, os padrões criados não existem, especialmente quando nos referimos a algo além do nosso controle. Desses vieses cognitivos que caracterizam a forma como processamos informação é que surgem as teorias da conspiração, substrato de boa parte dos episódios anti-ciência.
Além das teorias conspiratórias, tweets de celebridades mal informadas podem causar um prejuízo danado. O rapper B.o.B. e o jogador da NBA Kyrie Irving sustentaram em suas redes sociais que a terra é plana e milhões de pessoas, principalmente jovens, compraram a ideia.
Em todos esses casos é preciso agir rápido, com alertas repetidos à desinformação, capazes de preencher eventuais "lacunas de coerência".
Durante as eleições, o presidente norte-americano questionou inúmeras vezes a segurança das vacinas. Trump cogitou inclusive criar uma comissão para "averiguar os malefícios da imunização em massa". Foi dissuadido da ideia por Bill Gates.
Uma maneira de evitar mais episódios de negação da ciência é escolher candidatos que respeitem o método científico e que não acreditem que uma limonada quente pode matar células tumorais. Por esse motivo, o movimento "314 Action" reuniu centenas de cientistas que lançaram candidaturas próprias para as eleições de meio-mandato nos Estados Unidos.
Alguns de nossos cientistas também se lançarão candidatos nas próximas eleições. Uma tentativa de ventilar com ciência um congresso formado, em boa parte, por políticos que negam a eficácia das vacinas, o aquecimento global, a teoria da evolução mas acreditam nos efeitos milagrosos da fosfoetanolamina.
O exercício da cidadania depende da capacidade de apreciar os questionamentos que a ciência nos traz, inclusive sobre o que sempre acreditamos.
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